O asfalto molhado e o ar cortante denunciam o término de nova noite rigorosa em Cidacos, onde o sol espreita a muralha verde em redor. Ainda que amparado pela florestação de La Salette e Vilar, no terceiro condado de Azeméis as brisas que correm são de nostalgia, camaradagem e fé. No cardápio deste lugar – outrora território senhorial – o prato forte contempla petiscos, bailaricos, debates e “pomadas”. É ponto de encontro de burguesia, juventude irreverente, de amargurados e sonhadores, religiosos e céticos, o condado de todos e daqueles que nos habitam.
Paro na fronteira com a cidade, junto ao imponente portão da Quinta de Cidacos, onde floresceu um dos mais importantes legados do concelho, de uma mulher que se batizou como oliveirense e valorizou a etnografia secular – D. Isabel Maria Calejo, fundadora do Grupo Folclórico de Cidacos e impulsionadora do Mercado à Moda Antiga, em 1997. Desta quinta, muitas famílias saíram de estômago forrado e de espírito crítico aguçado, uma das inúmeras lições desta mestra. Em simultâneo, cedeu cozinha e salas para, a par de figuras como o chefe Lindolfo, contribuir para o aperfeiçoamento das aclamadas Papas de São Miguel, obrigatoriamente acompanhadas por padas de Ul.
Afinal, estamos em Cidacos, epicentro de Azeméis no que à arte gastronómica diz respeito. Já lá vamos.
Neste condado, D. Isabel Maria Calejo encontrou pessoas devotas, até pela proximidade a La-Salete. Ao descer, entre ruelas de paralelos, encontro a humilde capela de Nossa Senhora do Carmo, outrora motivo de procissões e mote para a festa local – que reunia grupos folclóricos locais com outros viajados desde Espanha e França. E também a São Pedro eram devotos os habitantes de Cidacos, numa data que evidenciava o rancho infantil.
Na segunda metade do século XX, Cidacos plantou a essência no mapa europeu, graças ao altruísmo e paixão dos mestres e humildes desconhecidos que elevaram este lugar a bastião de Azeméis. E não fica por aqui.
Como referido, por estas ruelas há o dom de fazer singrar a arte à mesa, atraindo conterrâneos e forasteiros. Basta disparar célebres referências: Zé Dias, Rampinha, Maranata, Judite – ou Boemiu’s – Diabo, Zic Zac e Retiro da Cerca. Porque, em primeiro, sabem a porto seguro. São casas democráticas, abertas a quem anseia conhecer e pertencer ao meio onde reside. Há algazarrada, brindes e conversas cruzadas, petiscos em excesso, relógios travados, confissões e o despir de “estatutos” – que nada valem.
Em suma, Cidacos, Vilar e Escravilheira – lugares de camaradagem e humildade – são luz e servem de pilares a Azeméis, sufocada por futilidades e egoísmos. É de coração a ferver que me dedico à escrita sobre estes condados, aos quais prometo regressar, para desvendar ícones, lendas e empreitadas.
Brindemos, então, às gentes de Cidacos, em especial ao legado de D. Isabel Maria Calejo. A quinta onde habitou até pode desaparecer – um risco real – mas o legado prevalece na história de Azeméis. É imune à gentrificação que prolifera no coração do concelho.
Permitam-me uma nota de rodapé. O lugar de Cidacos perdeu, no princípio de março, uma mulher de armas, de legado indelével. A minha querida tia Florinda partiu sem avisar. Uma mulher de ferro. Viveu como Cidacos, pronta a agarrar o sol, até nos dias de tempestade. Que descanse em paz e nos ilumine.
Santiago de Riba-Ul, 18 de março de 2025