Quarta-feira, 4 de Junho de 2025
Quarta-feira, 4 de Junho de 2025

Os anciãos de Azeméis

> Crónica do jornalista Samuel Santos. Publicada na edição número 29, de outubro 2024, na versão impressa do jornal azeméis.net.

A pacatez que abraça o Parque de La Salette é, não por raras vezes, contrariada pelas peças de dominó e cartas que ressaltam nas mesas de cimento. À beira estrada, os anciãos da minha cidade aproveitam as tardes de sol para intensificar a brisa que agita a mancha verde, por estas semanas também alaranjada.

Em grupo, apinhados em redor da mesa mais pequena, assistem entusiasticamente aos duelos de damas, dominó ou demais jogos de cartas. Aguerridos, o limiar entre a amizade e o confronto esbate-se, em prol daquelas horas, quiçá a última oportunidade de vencer.

Publicidade

Sublinhe-se, há claques mais recatadas! Ali são medidos egos, manhas e memórias, e esvazia-se a adrenalina, como fizeram com berlindes, peões, paus e outros brinquedos inventados.

Este é o combustível que diferencia os “idosos” dos “velhos”. Esta vontade de viver, de saudar a manhã e capitalizar os elos, rejeitando a ideia pré-concebida de “terceira idade”. É motivo de fascínio. Paro, observo e almejo atingir tal condição, na certeza de que muito terei de trabalhar até lá, provavelmente para lá dos 70 anos. Capto aquela força e guardo-a nos derradeiros objetivos de vida.

Aqueles anciãos – homens e mulheres, entenda-se – reservaram o direito de saborear os pormenores, despreocupados quanto ao rumo, ignorando as malapatas da idade. E não se ficam pela La Salette.

Publicidade

No centro da cidade reúnem na mais distinta esplanada. Cafés, chás, croissants, torradas, pães secos, águas e queques. Há de tudo e de todos, em volta de mesas ecléticas. É uma autêntica salada “à portuguesa” de argumentos, dos temas óbvios – a guerra, a bola e as soluções para o desgoverno – e de tópicos mais sensíveis. As memórias de África, os camaradas (e antigos amores) que recentemente partiram, aqueles que adoeceram ou regressaram. Debatem animadamente, alheios a eventuais incomodados. Terão inveja daquela algazarra!

Foi o jogador que não pisou o adversário, o ministro que não falou, a atriz que não gritou convictamente ou a marcação da próxima “tainada”. Partilham as novas da família, dos netos que já trabalham ou da pensão que emagrece a cada ano. Há sempre motivo, entre sorrisos, abraços e olhos encharcados. São os primeiros a descartar a alegada monotonia da cidade. Há vida!

Um quilómetro acima, junto da paróquia, outro motivo de convívio, para se aprimorarem valências, ora motoras, ora intelectuais. Há dezenas de corajosos – e humildes – que se desafiam a (re)aprender diferentes disciplinas, da música à história, dos idiomas à memória. Em suma, ostentam a batuta do destino e provam que o derradeiro apeadeiro surgirá quando nos resignarmos ao tempo.

Partem para viagens, comezanas, bailaricos, museus e praias. Este é, sublinhe-se, um investimento justo, em prol do bem-estar de quem tanto deu à comunidade. Que desfrutem, amanhã quem sabe o que os espera.

As damas – essas e as peças – o dominó e as cartas causam confrontos. Os passeios e aulas também geram desencontros. Mas, tudo passa, pois ninguém quererá guardar um peso

desnecessário neste capítulo. Assim, é com felicidade – até emoção – que paro para os contemplar.

Neste jogo da cronologia humana, tal contexto seria convidativo a Ferreira de Castro. Todavia, no século XX, a vila de Azeméis não conhecia estas oportunidades e dinâmicas sociais, um dos motivos que “empurraram” o nobre escritor para Sintra.

De que conversaria este autor, o mais traduzido antes de Saramago? Das desaventuras pelo Brasil e pela burguesia europeia, das epopeias na capital. Em simultâneo, recomendaria ambição à política e reforço da cultural local, desvendando renovados motivos para dissertar sobre a vila elevada a cidade e referência industrial e desportiva.

Face à inconfundível postura, Ferreira de Castro seria discreto – mas assertivo – e aceitaria com agrado o estatuto de igualdade entre os pares. Quereria escutá-los, de livre voz, para que pudesse “beber” dos rumos ainda desconhecidos.

Reservar este privilégio é um objetivo longínquo, quando a vida se tratar, sobretudo, do mero jorrar de novas histórias, sem peso para transtornos. Quando esta passagem for um museu de conquistas e lições, que nos enche de paz. Nessa fase, a motivação para ser algo mais será o fator distintivo entre “idosos” e “velhos”.

Seremos os novos jovens, aqueles de língua solta e aptos para o que há ainda a compor. Sem pressa, por cá para saborear. Aí, a viagem será plena. Rolam as peças e dobram-se as cartas na mesa de granito, abraçam-se os camaradas. E a vida é bela.

Escrito algures entre Estarreja e Coimbra, e vice-versa, ao som do álbum “Subida Infinita”

Facebook
Twitter
Email
WhatsApp

Uma resposta

  1. Parabéns pelo excelente texto, hoje tão raro na nossa pobre comunicação social regional.
    Ao seu autor os meus parabéns.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Publicidade

LEIA TAMBÉM

Leia também

+ Exclusivos

Os ARTIGOS MAIS VISTOS