A pacatez que abraça o Parque de La Salette é, não por raras vezes, contrariada pelas peças de dominó e cartas que ressaltam nas mesas de cimento. À beira estrada, os anciãos da minha cidade aproveitam as tardes de sol para intensificar a brisa que agita a mancha verde, por estas semanas também alaranjada.
Em grupo, apinhados em redor da mesa mais pequena, assistem entusiasticamente aos duelos de damas, dominó ou demais jogos de cartas. Aguerridos, o limiar entre a amizade e o confronto esbate-se, em prol daquelas horas, quiçá a última oportunidade de vencer.
Sublinhe-se, há claques mais recatadas! Ali são medidos egos, manhas e memórias, e esvazia-se a adrenalina, como fizeram com berlindes, peões, paus e outros brinquedos inventados.
Este é o combustível que diferencia os “idosos” dos “velhos”. Esta vontade de viver, de saudar a manhã e capitalizar os elos, rejeitando a ideia pré-concebida de “terceira idade”. É motivo de fascínio. Paro, observo e almejo atingir tal condição, na certeza de que muito terei de trabalhar até lá, provavelmente para lá dos 70 anos. Capto aquela força e guardo-a nos derradeiros objetivos de vida.
Aqueles anciãos – homens e mulheres, entenda-se – reservaram o direito de saborear os pormenores, despreocupados quanto ao rumo, ignorando as malapatas da idade. E não se ficam pela La Salette.
No centro da cidade reúnem na mais distinta esplanada. Cafés, chás, croissants, torradas, pães secos, águas e queques. Há de tudo e de todos, em volta de mesas ecléticas. É uma autêntica salada “à portuguesa” de argumentos, dos temas óbvios – a guerra, a bola e as soluções para o desgoverno – e de tópicos mais sensíveis. As memórias de África, os camaradas (e antigos amores) que recentemente partiram, aqueles que adoeceram ou regressaram. Debatem animadamente, alheios a eventuais incomodados. Terão inveja daquela algazarra!
Foi o jogador que não pisou o adversário, o ministro que não falou, a atriz que não gritou convictamente ou a marcação da próxima “tainada”. Partilham as novas da família, dos netos que já trabalham ou da pensão que emagrece a cada ano. Há sempre motivo, entre sorrisos, abraços e olhos encharcados. São os primeiros a descartar a alegada monotonia da cidade. Há vida!
Um quilómetro acima, junto da paróquia, outro motivo de convívio, para se aprimorarem valências, ora motoras, ora intelectuais. Há dezenas de corajosos – e humildes – que se desafiam a (re)aprender diferentes disciplinas, da música à história, dos idiomas à memória. Em suma, ostentam a batuta do destino e provam que o derradeiro apeadeiro surgirá quando nos resignarmos ao tempo.
Partem para viagens, comezanas, bailaricos, museus e praias. Este é, sublinhe-se, um investimento justo, em prol do bem-estar de quem tanto deu à comunidade. Que desfrutem, amanhã quem sabe o que os espera.
As damas – essas e as peças – o dominó e as cartas causam confrontos. Os passeios e aulas também geram desencontros. Mas, tudo passa, pois ninguém quererá guardar um peso
desnecessário neste capítulo. Assim, é com felicidade – até emoção – que paro para os contemplar.
Neste jogo da cronologia humana, tal contexto seria convidativo a Ferreira de Castro. Todavia, no século XX, a vila de Azeméis não conhecia estas oportunidades e dinâmicas sociais, um dos motivos que “empurraram” o nobre escritor para Sintra.
De que conversaria este autor, o mais traduzido antes de Saramago? Das desaventuras pelo Brasil e pela burguesia europeia, das epopeias na capital. Em simultâneo, recomendaria ambição à política e reforço da cultural local, desvendando renovados motivos para dissertar sobre a vila elevada a cidade e referência industrial e desportiva.
Face à inconfundível postura, Ferreira de Castro seria discreto – mas assertivo – e aceitaria com agrado o estatuto de igualdade entre os pares. Quereria escutá-los, de livre voz, para que pudesse “beber” dos rumos ainda desconhecidos.
Reservar este privilégio é um objetivo longínquo, quando a vida se tratar, sobretudo, do mero jorrar de novas histórias, sem peso para transtornos. Quando esta passagem for um museu de conquistas e lições, que nos enche de paz. Nessa fase, a motivação para ser algo mais será o fator distintivo entre “idosos” e “velhos”.
Seremos os novos jovens, aqueles de língua solta e aptos para o que há ainda a compor. Sem pressa, por cá para saborear. Aí, a viagem será plena. Rolam as peças e dobram-se as cartas na mesa de granito, abraçam-se os camaradas. E a vida é bela.
Escrito algures entre Estarreja e Coimbra, e vice-versa, ao som do álbum “Subida Infinita”