Enquanto aguarda pelo efetivar das noites de verão, o final de tarde de 22 de junho dá aso a uma brisa, que puxa tons rosados para o céu. Para animar esta tela, a praça José da Costa – o jardim público de Azeméis – é brindada com o regresso das Marchas da Escravilheira, silenciadas há 18 anos. Dezenas de herdeiros desta rejuvenescida tradição alcançam o coração da cidade numa corrente pintada de vermelho e branco, com pormenores a verde e amarelo. A energia e cumplicidade entre os elementos daquele pelotão é tal, que os passeios são estreitos para os curiosos aglomerados nas imediações do tribunal.
De boina ou chapéu, de colete e camisa, aquela gigante família desfila com estandartes, arcos e demais adereços pitorescos, entoando quadras e bailando as coreografias ensaiadas à exaustão. Identifico de imediato o panorama descrito pelo meu avô, descendente dos Presas, uma das famílias bastião da Escravilheira. Quanto a mim, do S. João “santiaguense” recordo a ementa – batata, sardinha, salada, broa e pão – os martelos, os balões de ar quente e os saltos à fogueira. Algo diferente daquela logística, que reuniu dezenas de vizinhos – e familiares – espelhando valores edificados há mais de século.
“Marcha popular
Voltaste a cantar
Em honra ao João
Que nesta noitada
Não te falte nada
Nem os bombos a rufar”
No condado da Escravilheira, a vida decorre noutros acordes, numa essência bairrista invejável. De tal modo que contagia o quotidiano de Azeméis. Afinal, a maioria dos oliveirenses guardam elos – independentemente da afinidade – que apontam à rota deste “berço” do concelho. É uma rua que parece interminável, ora em distância, ora em histórias.
Sentado à lareira na companhia do mestre Xico – o referido descendente dos Presas – ouço histórias sobre os Roque, Rosa, Junqueira e Monte, que na Escravilheira edificaram legado, a princípio à boleia dos negócios firmados. Entusiasmado, o avô relata aventuras nas águas que correm ao fundo deste lugar, quando a Escravilheira era cercada por mato e Azeméis dominada por senhorios. Por isso, recorda as vindimas e outras desaventuras na “Quinta do Borges”, em breve o aclamado – e demorado – “Parque Verde”.
transeuntes e forasteiros. Em simultâneo, a influência daquelas famílias cresceu em diferentes esferas, da contabilidade ao calçado, da política à religião, da arte ao ensino. Todavia, o sentido de comunidade não foi esmagado por egos ou desencontros ideológicos.
Naquele final de tarde de 22 de junho foi com emoção que identifiquei semelhanças entre a Associação Recreativa e Cultural da Escravilheira (ARCE) e a ACREV, de Vilar – condado tema na carta anterior. Estes são motores para a sobrevivência do espírito irrequieto de Azeméis. Ora, a união que culminou no regresso das Marchas da Escravilheira obrigam-me a recordar que neste concelho há dezenas de coletividades que subsistem a troco de sorrisos e abraços, em prol da herança afetiva. E este é um bem público a preservar.
Devo agradecer aos mestres, família e amigos do peito que me abraçam na Escravilheira, condado que guarda lendas, ícones e essência, onde a brisa afasta as nuvens. É um tesouro mal guardado, apetrechado de almas sobre-humanas. A eles dedico esta carta e parte do que sou. E é um orgulho sentir-me em casa naquele espírito bairrista
Resta escrever sobre Cidacos, o terceiro e derradeiro condado de Azeméis. Até breve!
Santiago de Riba-Ul, 24 de fevereiro de 2025