Segunda-feira, 2 de Junho de 2025
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Mestre João Ramalho e o dom de morar no futuro

> O Museu de Oliveira de Azeméis recebeu uma exposição do Mestre João Ramalho, autor de vários cartazes de vários eventos culturais, com destaque para as Festas de La Salette.

Na azáfama das derradeiras horas de Mercado à Moda Antiga, as famílias dividem-se na rua pedonal e medem forças no jogo da corda, que opôs mulheres a homens. Entre gargalhadas – e alegações de que “elas são mais que as mães” – o saltitar de barraquinha em barraquinha conduz-me à casa-museu, à porta do animado duelo.

“Faça o favor de entrar!”, atira o anfitrião, senhor de fato, presença discreta e distinta. Não hesito e embarco numa imensidão de aguarelas, de tantos tons quanto o olhar pode captar. Estou rodeado por uma parcela de história que desconhecia. Há cartazes minimalistas, épicos, tradicionais, saudosistas, futuristas, disruptivos e como já não se fazem.

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De tal modo que o cartaz das festas em honra a Nossa Senhora de La Salette de 1960 foi recuperado para 2025. Todavia, há diferenças substanciais, a começar pela gestão do espaço. No original, a informação não é excessiva, tornando-se aprazível ao olhar. Intemporal.

Afinal, quem foi este artista e viajante no tempo?

Naquela mesma pedonal – onde no Mercado à Moda Antiga ecoam cantorias – nasceu João de Oliveira Ramalho, em janeiro de 1917. E veio ao Mundo com o dom de apontar ao futuro, por via da arte. O contexto humilde – para lá de difícil – não o impediu de capitalizar o talento na Escola de Artes e Ofícios.

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Já adulto, na década de ‘40, juntou esta paixão ao ofício do notariado. De fato aprumado, graduação de óculos elevada e caderno e lápis sempre a postos, rascunhava conforme sentia e sonhava. Sem a ambição de viver da arte, fez furor entre conterrâneos, até porque integrou várias coletividades, como Bombeiros Voluntários, Grupo Folclórico de Cidacos e Comissão de Melhoramento do Parque de La Salette. Por isso, foi desafiado a desenhar os cartazes da festa religiosa, além das festividades em Cidacos e na «vila» de São João da Madeira.

De lápis bem afiado expressou-se em pequenas maquetes, sem que os problemas de visão atrapalhassem o delinear de pormenores, traços e formas, bem visíveis quando o rascunho se agigantava.

Obrigado a viajar com frequência ao Porto para renovar materiais e concluir estas empreitadas, João Ramalho acumulou contactos, escancarando as portas para oportunidades em variadas paragens, como Espinho e Viseu. Com o espólio em franca expansão, colaborou com a célebre pasta Couto e a «bicicleta motorizada» Famel, e promoveu inúmeras empresas de Azeméis, com destaque para laticínios e calçado. De notar que centenas de maquetes – provavelmente a maioria – foram edificadas “pro bono”, por mera paixão.

Pelo meio, em 1970, fundou o jornal “A Voz de Azeméis”, na ânsia de manter os conterrâneos em alerta e edificar a ponte com os milhares de oliveirenses deslocados e emigrados. De novo, intemporal. Para esta aventura – com a redação montada em casa – contou com o decisivo apoio de família e amigos, quando montar e embalar jornais era bem mais exigente.

Dezoito anos volvidos, a história terrena de João de Oliveira Ramalho terminou, enquanto o legado continuou a crescer. Para lá da cronologia d’“A Voz de Azeméis” – memória alocada na minha infância – o espólio deste mestre é um bem público a florescer – e a rejuvenescer – no coração da cidade.

Naquela tarde de Mercado à Moda Antiga – intermitente entre sol e chuva – o anfitrião da casa-museu era o filho do mestre Ramalho, emocionado com o interesse de conterrâneos e forasteiros. E o brilho não era menor nos olhos da esposa e da filha Ana – preciosas ajudas para esta carta.

Daqueles momentos guardo também a imagem do reencontro do meu avô com camaradas e amigos, muitos conhecidos à data daqueles cartazes. Afinal, presenciaram, por exemplo, as festas de Cidacos que receberam grupos folclóricos de Espanha e França. Para aquela geração, a exposição serviu para recuar à juventude. Para mim, serve para apontar ao futuro.

Enaltecer o legado de João de Oliveira Ramalho permite interligar elos geracionais, compreendendo o trilho de antepassados, o que falta concretizar e para onde caminhamos. Como podemos exigir o futuro sem conhecer a estória dos mestres? Desafiam consciências e apontam a um cenário, quiçá, utópico, mas aliciante.

No fim de semana à Moda Antiga, o mestre Ramalho ressurgiu na ribalta oliveirense. E veio para ficar.
Parque de La Salette, 27 de maio de 2025

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