Respiro fundo, encho-me de coragem para sair do carro e enfrento o ar cortante. Miro o destino, a meras dezenas de metros. Passo apressado, mãos nos bolsos do quispo e o salto dos sapatos contra os paralelos, ao compasso da música natalícia que ecoa. Num ápice, de cara gélida, alcanço a entrada, sob olhar atento dos camaradas de Firmino Pires. Em simultâneo entra uma criança, de olhar trancado no lanche e de mochila às costas, na companhia da avó, que se apressa a cumprimentar as amigas.
Ora, este seria o cenário expectável em qualquer estabelecimento, não fosse esta carta dedicada às Farturas Couto, por estas semanas de regresso à La Salette, a propósito do parque de natal. Os cabeça de cartaz nas festas de agosto encontraram nesta década motivos para reforçar o legado quase secular em Azeméis. Uma cartada inteligente de quem os convidou, pois onde estiverem as Farturas Couto, certamente vão estar os oliveirenses. De pouco valeria ornamentar o parque com pomposas iluminações se não existissem motivos para permanecer – abrigado – e forrar o estômago. E esta é a especialidade das Farturas Couto, até no inverno.
“Amigo, quantas são?”
Sou interpelado pelo sorriso de Firmino Pires, o herdeiro deste honroso negócio. Do pai – Manuel Pires – bebeu a arte de afinar a massa, de calcular os diâmetros do corte e os tempos de fervura. E, em primeiro, recebeu a paixão por este modo de vida. Da mocidade recorda os verões divididos entre Gondomar – de onde são naturais – inúmeras romarias e feiras, até estacionarem em Azeméis. Neste concelho, o elo é distinto, transversal às diferentes gerações, de tal modo que os intervenientes das Farturas Couto são abordados como conterrâneos.
“Ora bem, quero uma fina e uma Pedras, por favor”
Raro aquele que recusa uma fartura – fina, de preferência, bem crocante – até porque este doce cai bem em qualquer mês. Se é natal quando uma pessoa quiser, uma fartura Couto cai bem quando um oliveirense a desejar.
Por estas semanas, o calor proveniente do balcão central convida à entrada, deixando a esplanada despida. Na impossibilidade de replicar os longos serões de agosto, as visitas são mais curtas, ainda que prazerosas. Como manda a tradição, misturam-se crianças e adultos, famílias e grupos de amigos, com os copos a tilintarem. São farturas – finas, grossas e recheadas – guardanapos arrancados em catadupa, petizes com as beiças lambuzadas e graúdos atrapalhados com a canela e o açúcar em pó. Há conversas cruzadas, gargalhadas, debates sobre quem paga a conta, cadeiras de arrasto e a equipa de Firmino Pires a ziguezaguear, num estonteante vaivém.
No exterior, há olhares atentos sobre este turbilhão. São emigrantes instalados na cidade há poucas semanas, aproveitando o contexto natalício para se integrarem e oferecerem aos filhos a sensação de pertença. E que não falte o nosso abraço para lá desta época festiva.
“Vou levar meia-dúzia, fininhas, por favor”
O legado das Farturas Couto está apetrechado de mais-valias para Azeméis, com a empregabilidade e a dinamização do parque à cabeça. O anúncio de cada regresso ecoa na rua pedonal, aterra nas freguesias e, em questão de dias, revoluciona o trânsito no parque. Ótimo. Fico amargurado com o parque escuro, silencioso, frio e inseguro.
Neste pavilhão, a comunicação simplifica-se com termos como “finas”, “grossas”, “recheadas”, “meia dúzia”, “uma dúzia” ou “multibanco só a partir dos dez euros” – a regra que teimo em esquecer. Na hora da despedida, retribuo a alegria que dão ao parque, sentimento partilhado por centenas de clientes e conterrâneos. É uma questão de afeto, que toca o íntimo de cada oliveirense.
Aquela primeira dentada – que estilhaça a fartura – devolve-nos a episódios inesquecíveis, de reencontros, amizades e família. De tardes na infância e de longas noites longas. Sobre este novo hábito de farturas em dezembro – além de um caricato episódio no qual ficámos às escuras durante horas – recordo os finais de tarde, durante os quais o frio e a chuva foram arrebatados pela perseverança de Firmino Pires e companhia.
“Então, até agosto, no sítio do costume”
As Farturas Couto visitam o parque de La Salette e Azeméis desde a década de ‘30 do século XX. Quase 100 anos depois, os fundadores terão, por certo, orgulho no envolvimento de todo um concelho, a segunda casa e o epicentro do legado deste negócio. Por cá, terão sempre o título de conterrâneos, indispensáveis nos meses festivos.
A eles, o meu obrigado. A visita em dezembro foi o combustível ideal para esta carta. Perdoem-me as outras churrarias, mas não há farturas como as Couto. Até breve!