Na azáfama das derradeiras horas de Mercado à Moda Antiga, as famílias dividem-se na rua pedonal e medem forças no jogo da corda, que opôs mulheres a homens. Entre gargalhadas – e alegações de que “elas são mais que as mães” – o saltitar de barraquinha em barraquinha conduz-me à casa-museu, à porta do animado duelo.
“Faça o favor de entrar!”, atira o anfitrião, senhor de fato, presença discreta e distinta. Não hesito e embarco numa imensidão de aguarelas, de tantos tons quanto o olhar pode captar. Estou rodeado por uma parcela de história que desconhecia. Há cartazes minimalistas, épicos, tradicionais, saudosistas, futuristas, disruptivos e como já não se fazem.
De tal modo que o cartaz das festas em honra a Nossa Senhora de La Salette de 1960 foi recuperado para 2025. Todavia, há diferenças substanciais, a começar pela gestão do espaço. No original, a informação não é excessiva, tornando-se aprazível ao olhar. Intemporal.
Afinal, quem foi este artista e viajante no tempo?
Naquela mesma pedonal – onde no Mercado à Moda Antiga ecoam cantorias – nasceu João de Oliveira Ramalho, em janeiro de 1917. E veio ao Mundo com o dom de apontar ao futuro, por via da arte. O contexto humilde – para lá de difícil – não o impediu de capitalizar o talento na Escola de Artes e Ofícios.
Já adulto, na década de ‘40, juntou esta paixão ao ofício do notariado. De fato aprumado, graduação de óculos elevada e caderno e lápis sempre a postos, rascunhava conforme sentia e sonhava. Sem a ambição de viver da arte, fez furor entre conterrâneos, até porque integrou várias coletividades, como Bombeiros Voluntários, Grupo Folclórico de Cidacos e Comissão de Melhoramento do Parque de La Salette. Por isso, foi desafiado a desenhar os cartazes da festa religiosa, além das festividades em Cidacos e na «vila» de São João da Madeira.
De lápis bem afiado expressou-se em pequenas maquetes, sem que os problemas de visão atrapalhassem o delinear de pormenores, traços e formas, bem visíveis quando o rascunho se agigantava.
Obrigado a viajar com frequência ao Porto para renovar materiais e concluir estas empreitadas, João Ramalho acumulou contactos, escancarando as portas para oportunidades em variadas paragens, como Espinho e Viseu. Com o espólio em franca expansão, colaborou com a célebre pasta Couto e a «bicicleta motorizada» Famel, e promoveu inúmeras empresas de Azeméis, com destaque para laticínios e calçado. De notar que centenas de maquetes – provavelmente a maioria – foram edificadas “pro bono”, por mera paixão.
Pelo meio, em 1970, fundou o jornal “A Voz de Azeméis”, na ânsia de manter os conterrâneos em alerta e edificar a ponte com os milhares de oliveirenses deslocados e emigrados. De novo, intemporal. Para esta aventura – com a redação montada em casa – contou com o decisivo apoio de família e amigos, quando montar e embalar jornais era bem mais exigente.
Dezoito anos volvidos, a história terrena de João de Oliveira Ramalho terminou, enquanto o legado continuou a crescer. Para lá da cronologia d’“A Voz de Azeméis” – memória alocada na minha infância – o espólio deste mestre é um bem público a florescer – e a rejuvenescer – no coração da cidade.
Naquela tarde de Mercado à Moda Antiga – intermitente entre sol e chuva – o anfitrião da casa-museu era o filho do mestre Ramalho, emocionado com o interesse de conterrâneos e forasteiros. E o brilho não era menor nos olhos da esposa e da filha Ana – preciosas ajudas para esta carta.
Daqueles momentos guardo também a imagem do reencontro do meu avô com camaradas e amigos, muitos conhecidos à data daqueles cartazes. Afinal, presenciaram, por exemplo, as festas de Cidacos que receberam grupos folclóricos de Espanha e França. Para aquela geração, a exposição serviu para recuar à juventude. Para mim, serve para apontar ao futuro.
Enaltecer o legado de João de Oliveira Ramalho permite interligar elos geracionais, compreendendo o trilho de antepassados, o que falta concretizar e para onde caminhamos. Como podemos exigir o futuro sem conhecer a estória dos mestres? Desafiam consciências e apontam a um cenário, quiçá, utópico, mas aliciante.
No fim de semana à Moda Antiga, o mestre Ramalho ressurgiu na ribalta oliveirense. E veio para ficar.
Parque de La Salette, 27 de maio de 2025
2 respostas
Adendas no meu comentário:
Quando descrevo as minhas memórias descritas no antepenúltimo parágrafo, omiti involuntáriamente “… assim como da sua educadíssima esposa que tive o prazer de conhecer” e de seu filho…;
No que diz respeito ao penúltimo parágrafo, vulgarmente diz-se “pano para mangas”, pois o termo é discutir o assunto, ainda que, para isso, muitas pessoas gostem de o fazer arregaçando as mangas para o efeito! Escrevi “mantas” por lapso embora este termo tambem se possa adaptar ao fim em vista.
No fundo, resta a memória de tudo quanto foi lembrado e que deu origem ao meu comentário.
Muitíssimo grato a Samuel Santos (pessoa que não conheço pessoalmente mas que me faz lembrar, através dos seus escritos de excelente qualidade, o que de bom existe(iu) no presente (passado) em Oliveira de Azeméis, terra onde nasci exatamente no mesmo dia e mês em que narrou a sua história de hoje, só que tal aconteceu no já longínquo ano de 1940…), por me dar a oportunidade de recordar, com saudade, o Homem chamado João de Oliveira Remalho, pessoa dotado de uma personalidade fortíssima, exigente mas educado, no desempenho das suas funções responsáveis no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis e artísta nos seus trabalhos extraordinários e muito conhecidos então levados a cabo por gosto e de modo amador e extra profissional.
Não posso esquecer quantas vezes ele ia à Gráfica Oliveirense com trabalhos que ele criava para os mesmos fossem compostos e impressos tipográficamente, exigindo, como era natural que assim fosse, que nada fosse alterado, mesmo que se julgasse ser melhor acrescentar ou retirar uma vírgula, assim como corrigir a composição do parágrafo ou forma escrita de uma palavra ou frase… Ignorância de quem assim procedia porque isso obrigava a destruir o que tinha sido alterado, sem sua autorização, obrigando a firma a cumprir na íntegra aquilo que lhe havia sido encomendado por ele! Verdadeiramente inesquecível para mim, volvidas que são mais de sessenta anos!
Guardo na minha memória a pessoa que foi João de Oliveira Ramalho, assim como da sua educadíssima, e de seu filho, “rapaz” da minha idade, de seu nome também João Ramalho, que, tal como eu, também cumpriu serviço militar na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, no princípio da década de sessenta. “Velhos tempos”, como gostam de assim recordar o passado as pessoam dessas ou de épocas anteriores.
Melhores ou piores épocas de então quando comparadas com as mais recentes, é tudo relativo, pois quando se discute este tema, há “pano para mantas” de fartura para que a conversa seja longa e, talvez, bem educativa.
Foi bom voltar a recordar João de Oliveira Ramalho, pela sua maneira de ser, a sua cultura, a sua educação e profissionalismo exemplares.