Na freguesia onde resido, a escassos quilómetros do centro citadino, há padrões coloridos entre árvores e terrenos agrícolas, e percursos românicos, onde cantam pardais, melros, pegas, rolas e corvos. Na minha rua, fronteira de freguesias, há uma antiga quinta, o parque para gatos de todas as classes. Do topo, na direção do mar, vejo uma imensidão de céu – que varia entre o azul, branco, cinza, laranja e rosa – e avisto diferentes capelas. É uma perspetiva desimpedida, tão natural e serena. Rejubilo, enquanto o sol me aquece a face, o vento renova as ideias e diferentes pólenes e poeiras prometem agravar as alergias.
Entretanto, ao rodar o olhar para a esquerda, a íris enjoa-se com o betão encavalitado nas colinas de Azeméis, descartando qualquer mancha verde.
Ora, na minha rua, parte do referido terreno é acompanhado por um muro de pedra, estreitando a estrada e surpreendendo quem nunca por cá passou. Se outrora fora motivo de contestação, hoje serve de estanque à “inundação de empreitadas”. Assim, o incómodo muro adquiriu um renovado sentido.
A menos de um quilómetro, erguem-se apartamentos pomposos, enquanto as fundações para outras torres estão terminadas. Onde miúdos brincavam e rãs coaxavam, a maquinaria contraria a pacatez do lugar, independentemente da hora. São requisitos destas obras, antes que o investidor repense a empreitada.
Abrimos a caixa de pandora
Em 2024, o coração da cidade viu desaparecer espaços verdes, panorâmicos e icónicos, por troca com construções mediáticas e comerciais. Em breve, o centro da cidade estará transformado numa masmorra, com a mais famosa rotunda asfixiada por barras de betão. Desde a superfície comercial de “nuestros hermanos” até às luxuosas torres a edificar nos próximos anos.
A palavra de ordem: construa-se! São prédios amontoados sem critério, apresentações promissoras, rotundas em voga – e abstratas – e uma cidade que caminha para a banalização, como se o prestígio se quantificasse por superfícies comerciais, restaurantes de “fast food” ou construções assinadas por excêntricos arquitetos.
Este amargo invadiu-me quando, no verão, numa visita ao barbeiro, analisei uma imagem de Oliveira de Azeméis na década de ‘80, quando o Centro Comercial Rainha era ainda uma colossal torre em edificação. Em meio século, a cidade evoluiu e agigantou-se, mas também resvalou para a desenfreada vontade de promover modernas construções, muitas vezes disfarçadas no lema do turismo, emprego e habitação.
Há avisos evidentes quanto à utilidade – e irreversibilidade – destes gigantes de betão. O Rainha – a princípio atraente, com cafés, restaurantes e até uma discoteca – transformou-se numa central de empresas e serviços, um fado inevitável. De “shopping” pouco ou nada resta. Prevalecem os bonitos candeeiros, as escadas rolantes – paradas e enferrujadas – e o piso subterrâneo, na década de ‘90 palco de amores e noites inesquecíveis.
Este é um caso paradigmático, mas repetido, por exemplo, em São João da Madeira, Porto e Coimbra. Construções modernas, mediáticas e pouco sustentáveis no longo-prazo.
Cinco notas
Deixo menções ao “Carpan” e às obras embargadas no mercado municipal. São locais sem futuro à vista, projetos estagnados – ou abandonados – autênticos memoriais de mau planeamento e de acordos pouco claros. Infelizmente, situações recorrentes. Como esquecer a empreitada na Igreja Matriz que exigiu uma dispendiosa emenda? São avisos reais sobre construções de génese irreversível.
Sobre recentes empreitadas – e céleres, note-se – uma das cadeias de “fast food” foi instalada ao lado de uma escola básica e secundária. Numa era em que tanto se fala dos perigos da obesidade, diabetes e da necessidade de uma alimentação saudável, quem sai a ganhar com a edificação destes restaurantes? O turismo da cidade, ou apenas os emissores destas marcas na região?
Uma última dúvida. Quem beneficia da construção de apartamentos de luxo? A classe “média-média” e “média-baixa”, ou os jovens, continuamente atirados ao mercado com salários incertos e precários? Mercado, esse, que os obriga a sair do concelho. Temo que este não seja o público-alvo do pomposo complexo luxuoso.
“Os ricos estão cada vez mais ricos”
Para acalmar eventuais ímpetos, esta não é uma carta política, nem patrocinada por cores partidárias. Trata-se de uma reflexão franca sobre saúde, sustentabilidade e sanidade social. Por exemplo, dos meses em Lisboa recordo a necessidade de subir à Penha França, ou de viajar até Belém, para respirar. O betão asfixia, de verdade. Nessa fase, regressar a Santiago, Ul ou à La-Salette era como mergulhar num oásis de natureza e paz.
De notar que a organização de um novo parque “verde” não afasta as preocupações acima elencadas. É um terreno devidamente aproveitado e capitalizado, que deveria servir de bitola para o planeamento urbano.
Assim, constato que o verdadeiro luxo é viver rodeado de natureza, tantas vezes silenciosa e sempre elucidativa e redentora. Pois, afinal, como nos ensinou o “mestre” Álvaro Caeiro, da natureza somos e vimos, e para ela voltaremos, a seu tempo.
Para o futuro, e até porque se aproximam meses de campanha eleitoral, guardo a esperança de que o muro de pedra permaneça intacto, para que o betão de última geração continue afastado desta tranquila rua.
Enquanto o vento me alimenta o sentido crítico, e o sol espreita entre as nuvens, observo a cidade, paulatinamente cercada por betão que se ergue desenfreadamente.
Queria escrever uma carta sobre as memórias do São Martinho para esta semana. Mas a honestidade foi mais forte. Responsabilizem o Jeremias Valente.
Bom proveito das castanhas, bem quentes e salgadas. Até breve!
Santiago de Riba-Ul, 7 de novembro de 2024